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sabato 19 maggio 2012

Prece à Morte (Fernando Mendes Vianna)

A morte, prestativo urubu,
me porá, enfim, a nu,
limpará minha ossada.
A morte, urubu prestativo,
libertará meu cerne
da carne
-essa carcaça enfeitada.

A morte dará, enfim, à luz
meu carme
o mais vivo,
diáfano e não baço
- espremido de todo o pus
da carne

A morte dispensará os músculos
- nonada, nonada -
no alto mar sem pó, sem jaça,
- onde sou nau ancorada
num opúsculo.

Recomeço ou fim,
voarei nas entranhas do abutre
(como Jonas nadou dentro da baleia).
E cessará a ceia
insone, tresnoitada
da minha gula insonte
e esquartejada
entre o Mal e o Bem
entre a desgraça e a graça

Ah, o próprio abutre
que de mim se nutre
me nutrirá a mim!
E, assim, todo meu luto e minha luta
hei de ver que se transmutam
em pura mônada, eterna fonte. Sim.

Não-pensa. Memória da aula sobre Bernardo de Manuel de Barros e Alberto Caeiro (cum Fernando Mendes Vianna & Juan Gelman)

Não pensei nisso e naquilo
Não-pensamento - Fernando Mendes Vianna:
Ave, és minha metonímia
Por isso
me eximes de vôo
Rio de todo Ícaro
de asas de papel.

A ave é meu aval.

A pedra: paradigma
lição de paciência.
(Antídoto da espuma)
A pedra, infinito silêncio
(Antídoto da crina).

Não apenas o cimo
e sua cimeira.
A mais pedestre pedra
- entre cisco e cisco -
onde tropeço,
é um aviso.

A mais pura linfa
nasce da pedra.
Mais do que a lágrima.
Curvo-me. Bebo.
Grato, beijo a pedra.


Bernardo acalma louca furiosa
Silencio dele é tão alto que os passarinhos ouvem de longe
E vem pousar no seu ombro.

Não pensar como Laruelle: exorcizar a soberania
deixar que as coisas me invadam e pensem
pelo terreiro
beco e beco
às moscas, ao deusdará
sem locomotiva: à disposição
para desposição
dispor, despor, depor
Auseinandersetzung
disputaria
Pensamento - Dieter Roos:
Scheissen, esfíncter, segurar a bosta ou largá-la no WC
segurar ou largá-la cum cura
deixar os pensamentos sem curadoria
largados, abertos, à sua própria sorte.

Bernardo encurta águas, estica horizontes
formigas pensavam em seu olho
É homem percorrido de existências.
Estão favoráveis a ele os camaleões.

Solto. Como cavalo velho no pasto, às moscas.
Pensamento ao léu.
Não pensamento - Manuel Bernardo de Barros:
Não tenho pensa.
Tenho só árvores ventos
passarinhos - issos.

Dentro de mim
eu me eremito
como os padres do ermo

...

Bom é
constar das paisagens
como um rio, uma pedra.

...

Já me dei ao desfrute
de ser ao mesmo tempo
pedra e sapo.

Também as coisas despensam
dispensam-se a si e desconfortavelmente
calçam outras
despensa-se porque o chão é terra invadida
não-pensar é o chão,
engole pó, bosta, cuspe, sinteco
acolhe o que pousa
resigna-se, mas não completamente
tem um cisco do demônio largado no meio dos grãos de terra
os objetos merecem suspeita
aos objetos não resigna
desossa eles (eles param pelas bordas de serem sólidos)
lata desossada
saco desossado
cigarro dessossado
o pensamento chão é coveiro
cava o que calça, enfurece de furos
destrembelha
põe a baixo, já que lhe apraz o caimento
lhe apraz o caimento, sabiam?

Não-pensar, lago quieto
que se aquiete o lago - com uma quieteira
produzir um estado de desandor
plácido, água parada que engole o que reflete
água parada no chão
Não-pensamento - Alberto Caeiro:
Acho tão natural que não se pense
...
Que pensará o meu muro da minha sombra?
Pergunto-me às vezes isso até dar por mim
A perguntar-me coisas...
E então desagrado-me, e incomodo-me
como se desse por mim com um pé dormemte.
Que pensará isto de aquilo?
Nada pensa nada.
Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem?
Se ela a tiver, que a tenha...
Que me importa isso a mim?
Se eu pensasse nessas coisas,
deixaria de ver as árvores e as plantas
e deixaria de ver a Terra
para ver só meus pensamentos...
Entristecia e ficava às escuras
E assim, sem pensar tenho a Terra e o cèu.

...

Vi que não há Natureza,
que Natureza não existe,
que há montes, vales, planícies,
que há árvores, flores, ervas
que há rios e pedras
mas não há um todo a que isso pertença.

Isto ocorre e isto, que me percorrem
que se percorrem sem casa própria
sem casa, sem oikos, ei-la longe
ei-la e ei-lo, disperso.
Apenas terra, e tela, e chão.






FMV: Avais
MB: Bernardo, O guardador de águas II, O livro de Bernardo
AC: O guardador de rebanhos, XXXII, XLVII

domenica 13 maggio 2012

Ratos e Urubus Larguem Minha Fantasia


Eis aqui o texto que vou apresentar em Ouro Preto no Fantasia e Crítica, 16 horas, 16 de maio. Minha mesa:
Logos, eikón e a potência crítica do corpo (sala 3)
“Se no início era o verbo, o que nos espera no final?” – Thiago Reis (UFOP)
“A abertura de Vênus” – Raísa Inocêncio (UFRJ)
“Escrita travesti” – Ana Chiara (UERJ)
“Ratos e urubus, larguem a minha fantasia ou cross-dressing: fantasia de gênero, fantasia de classe, fantasia de raça” – Hilan Bensuan (UnB)

O texto:

Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia ou
Cross-Dressing:
fantasia de gênero, fantasia de classe, fantasia de raça

Hilan Bensusan
Universidade de Brasília

Quando os mortos ou os vindouros necessitarem de uma estância, escreve Rilke em uma carta de 1924, que refúgio lhes poderia ser mais propício e agradável que o espaço imaginário? Ali é o outro lado da vida, que é como o outro lado da lua, aquele que fica sempre escuro, mas sem o qual, na imagem de outra carta de Rilke, a lua não é uma esfera. Ali fica a invenção. Ela faz parte do que há. Para onde zarpam os delírios produtores, onde há galáxia para cada ālam mithālī (cada mundo imaginal), para as possibilia – o que está para aquém de tudo o que poderia ter sido e foi. O desvio na rota que não foi tomado, a roupa que não foi vestida, o corpo que não foi beatificado, o sangue que não foi jorrado. Corbin pensa que os mundos imaginais são criações, confabulações e são aléns: além da montanha do Qâf, a fronteira do mundus imaginalis. E o gerado aumenta a realidade – como no poema de Rilke no Von der Pilgerschaft (em Das Stundenbuch) que diz para Deus: meu filho és. É o que creio no que crio e o que me salva não é aquilo que me criou e que me tem seguro, mas aquilo que eu solto em disparada rumo ao que não vejo. A teologia da invenção. A fantasia é uma deserção. E ela tece os véus da realidade um a um, conspiradora, sonâmbula, esdrúxula, inteira. Vai rumo a ela a corrente das coisas. A fantasia é desertada – ela é posta em exílio, largada pelos becos do subliminar, higienizada como os desejos, posta ao serviço das roldanas instituídas. Ela é posta para significar para dentro e não para fora. Como com os desertores: eles são perigosos e não quilombolas, infecciosos e não etnogênicos, maus exemplos e não mutações adaptativas. A deserção é especiação: é um movimento de cindir, de tramar outra clique, outro nicho, outro arco-íris de miasmas, ontogênese. Imaginário, imaginal. Buraco negro, cavalo d´água, cabelos soltos já que as coisas transbordam. Fantasia não conta contos de fada sobre a realidade – dos pais, das mães, das genitálias ou das represálias –, conta contos de fada sobre a fantasia. Mas a fantasia é a Grande Recusa, realíssima, ainda que desiluminada, verdade vital, ainda que fora da ordem dos fatos. E fatos ela tece, ficto arma facto, a fantasmagoria assombra os castelos mesmo quando eles já viraram lugares públicos de visitação e compras. Existe já que é inventado. Como os casamentos, os rios, os tutus servidos com torresmo. E sobem-lhe as fúrias. Hilda Hilst clama a Deus: olha-me a mim, antes que eu morra de águas, aguada do que inventei.

Freud diz que a introdução do princípio de realidade soltou uma atividade de fantasiação, de divagação que abandona sua dependência dos objetos reais. É prazer. Faz uma fenda, enfia uma cunha, solta os lobos. Não é que o princípio do prazer não trisca o princípio da realidade, eles se bolinam, se ciscam, se apalpam. Um costura o outro. Mandar as possibilidades para a terra de ninguém – a expressão de Marcuse no Eros & Civilization - inaugura um exílio. Um exílio ontogenético também. Vai pare teus filhos alhures e volta a Tebas. Réduire l’imagination à l’esclavage, diz o manifesto surrealista de Breton, c’est se dérober à tout ce qu’on trouve, au fond de soi, de justice suprême. Só a imaginação dá conta do que pode ser e exorciza o interdito terrível. E o manifesto diz mais: C’est vraiment à notre fantaisie que nous vivons, quand nous y sommes. As sociedades secretas. As correntes subterrâneas. Breton acena para o testamento, essa peça de legislação para o tempo inventado, a ficção constituinte: eu demando que levem meus restos ao cemitério em um caminhão de mudança. Que se faça. A investidura. A fantasia reclama seus direitos torcendo os regimes de realidade. A realidade é torção. Fantasia retorcida. Performada quand nous y sommes. Me dizem Valdemar, eu sou Lucia. Me dizem favelado, me visto de bacana. Uma camisa listada e saí por aí. Anatomia não é destino. Economia não é destino. Melanina não é destino. Eu fiz que fui não fui. Eu fiz que era. Paris is burning. Todos se travestem: é a terra de ninguém, é a estância no espaço imaginário, a terra do outro lado do arco-íris no meio de um baile subalterno de New York City. A fantasia é adoção. Jackie Kay escreveu um romance sobre um filho adotivo assimilando que o pai morto, trompetista, era uma cis-mulher que havia escolhido ser Joss para ter uma carreira no Jazz. O pai defunto era mulher na genitália. Nunca nadou comigo, ele... Uma mentira? Uma adoção. Colman, o filho, sabia que era adotado, mas não sabia que Joss havia também adotado em seu corpo uma mulher. Identidades são curvas no destino. Tortas. Colman entende a adoção. Uma jornalista o persegue, quer a história real de seu pai fêmea. Quer o sensacionalismo do princípio de realidade. Quer o tribunal da anatomia. Colman foge dela: ratos e urubus me larguem. Por que a transsexual tem que passar, tem que ser mais mulher que a cissexual? Ratos e urubus, larguem minha fantasia. Imitar. Quero ser a mamãe, quero ser o objeto de desejo da mamãe... Fantasia faz o monge. Demora. A fantasia de quem nasceu para matar, para ser tua, para ser estrela. Quand nous y sommes.

A investidura. O hábito faz o monge, faz o rei, faz o escravo, faz a mulher, faz o guarda da esquina. Faz o servo e o escravo e faz aparecer o mortal e divino. O hábito faz os hábitos, os gestos, os trejeitos. Uma saia faz os gestos dos joelhos, das coxas, das mãos. Agamben, em sua investigação da vida monástica, mostra como a investidura de um monge o tornava parte de uma vida comum e o capacitava a realizar certas performances. Sem o hábito, não há monge. Não há ritual. Com ele, mesmo que o monge deserte por dentro do hábito, há o monge. A liturgia se associa a um processo, a um modo de vida. O hábito faz o monge que diz: eis aqui a vida que eu calcei. Eu executo esta liturgia. Uma investidura – minha vida está investida desta vida. A vida em que eu emprego minha vida, talvez a bios em que eu emprego minha zoé: à notre fantaisie que nous vivons. A qualidade do batismo, ou de qualquer liturgia, não depende da qualidade do oficiante, mas da qualidade da investidura: é ela que faz a ação, que a executa ex opere operato. Não depende da vida por trás da vida, de quem é o padre por trás da batina, de qual é a zoé, a intenção do gesto executa apenas ex opere operantis que não afeta sua validade. Quem faz o monge é o hábito, não quem o veste. O hábito se torna um princípio de realidade por adoção. A fantasia que vivemos. Não irão os ratos e urubus desmantelar o hábito do monge herege, infiel, descrente e banhado em pecado. O hábito está protegido dos roedores. Está investido. Consagrado. Eu na vida sou mendigo na folia eu sou rei. Analogamente, pode-se falar da biologia ou da economia por trás do monge, ou do rei, ou da mulher, mas o que se fala não afeta a validade. Uma mulher é quem habita uma mulher. Habitar é também adotar, fazer ali um ninho, fazer ali um nicho. É um corpo que habita o hábito. O hábito é uma intervenção no corpo. Julia Serrano insiste que o feminismo abarca todas as formas de efeminismo. Não há que se fazer um baculejo biológico para saber quem é cis e quem é trans. Ali não tem um Rubicão. Quem habita é quem adota. Quem habita é adotado. Squat. Ocupa, ocupa, ocupa e resiste. O hábito faz o corpo, o cachimbo deixa a boca torta. A vida por trás da vida é roída pela fantasia. Finjas que crês, recomenda Pascal, e crerás. A melhor maneira de fingir alguma coisa, diz Austin, é sê-la. Notre fantasie que nous vivons. Performá-la. Não é uma recomendação para atuar de acordo com a fantasia, é antes uma outorga para que o hábito carcoma o corpo, let the dress be in you. Mas Agamben também ressalta o que Tomás de Aquino vaticinou acerca da liturgia do batismo: a validade do ato é manchada se o oficiante o executar por gozação. Gozação. Onde o princípio da realidade? É como quando se mostra como vestir um vestido, como quando em Pygmalion de Bernard Shaw o professor Higgins mostra a Liza Doolittle como se portar na alta sociedade e carregar em seu corpo as roupas e os chapéus apropriados a uma fair lady. Liza ainda não está se portando. Higgins está induzindo a metamorfose. Ela ainda não está em estado presencial. Trata-se de um exemplo. Apenas um exemplo. Uma representação e não uma apresentação. Um ensaio técnico, antes da investidura. A diferença está na representação: o padre estupra a criança e a batiza e o ato é válido; já se ele está de gozação, não. Há um baile de máscaras: operato, operantis, prazer, realidade, imaginário, imaginal. A complexidade é do baile de máscaras. Esther Newton, citada por Butler em Gender Troubles, diz que a travesti diz “minha aparência ´externa´ é feminina, mas minha essência ´interna´é masculina e ao mesmo tempo simboliza a inversão oposta: “minha aparência ‘externa’ é masculina, mas minha essência ‘interna’ é feminina. E Butler entende que o travestismo subverte a distinção entre os espaços psíquicos internos e externos. Paródia. E é paródia a liturgia – desde que investida.

Deleuze e Guattari, em Mille Plateaux, traçam algumas diferenças entre devir e imitar baseados no que devir, mas não imitar, interfere nas potências de um corpo específico. Devir-cachorro não é latir como o cachorro da rua, mas antes vestir sapatos nos pés e nas mãos e ter que amarrar o quarto pé com a boca. O hábito produz dificuldades e incapacidades em um corpo específico assim como roupas tornam possíveis ou mais fáceis certos gestos. A investidura produz uma impostura. Visto uma minissaia e, pronto, já cruzo as pernas de outro modo e minha barriga já se encolhe personificada. E visto um terno elegante e meus cabelos ganham a dignidade do alto clero, meus gestos se apropriam. O hábito veste em mim, calça em mim. Mas calça em mim, na complexidade do meu corpo vestido. Mais que uma performance, uma intervenção. Uma interferência. Meu prazer de ver as pernas que saem da minissaia, a realidade do corpo estranhado – a anatomia espeta o destino. Quando há uma representação, há uma imitação? Fazer um batismo por gozação. Posso latir como um cachorro, mas ainda não se trata de uma presença de mim no hábito do cachorro. De um devir. O devir é a metamorfose de Liza Doolittle, não o papel da personagem. Uma investidura. O hábito que habita. O princípio de realidade incorporado, travestido, presentificado, posto em liturgia e batizado. E há o princípio de realidade rato, urubu e caguete. Faz o baculejo e encontra a anatomia por trás do destino. Ou a economia por trás do destino. Liza travestida da alta sociedade pode virar desertora e também espiã, e também infiltrada. Veste-se o hábito, faz-se a liturgia. O filme Close-Up de Abbas Kiarostami documenta o julgamento de um homem que personificou o diretor Mohsen Makhmalbaf diante de uma família, apenas por que adotou a fantasia de Makhmalbaf. Adotou apenas. O homem, Hossein Sabzian, defende seu hábito: um nicho onde ele pudesse ser Makhmalbaf. C’est vraiment à notre fantaisie que nous vivons, quand nous y sommes. Cabe ao tribunal decidir entre o princípio de realidade e o princípio de prazer. A validade da adoção. Da investidura. Como coube a Colman decidir a identidade do seu pai. A diferença entre devir e imitar está talvez na controvérsia em torno do velho livro de Janice Raymond, The Transsexual Empire: the making of the she-male. Ela diz que as mulheres trans são homens infiltrados que nos imitam para nos violar. São enganos, engodos, estratagemas masculinos como cavalos de Tróia. São imitações sem investidura. Mas onde está a investidura? Julia Serrano, por exemplo, diz: elas estão investidas, investiram sua vida em sua efeminização, em seu porte na saia, em seus peitos, em sua neovagina, em se verem no espelho habitando o corpo de uma mulher. Estaria aqui na biologia o princípio de realidade? Ratos e urubus, larguem minha fantasia. As mulheres cis são biológicas, as mulheres trans são biológicas. A biologia é mutação, adoção, promoção de nicho, adulteração, travestismo. Há o hábito que se muda com uma cirurgia. Não uma representação, uma investidura.

O hábito é uma incorporação, cross- dressing. Romper alguma fronteira e vestir um corpo habituado ao masculino com uma mini-saia. Fazê-lo habitar outra roupa. O hábito é também um elemento que instaura, institui, patrocina um monge, uma mulher, um mendigo, um intocável ou um bacana. A fantasia é como um hóspede que se acomoda ao corpo – mas que faz o corpo se habituar a ele. De quem é a investidura? Visto a saia porque quero a mulher habitando em mim. Querer morar em uma mulher. Na sua pele. Habitar aquela pele. Chamam autoginefilia dos homens (e das mulheres que se aprontam para, com seu apron, para se tornarem mais natural women) que querem habitar aquele nicho. A Wikipédia diz sobre um apron: an apron is an outer protective garment that covers primarily the front of the body. O corpo interno e o corpo externo. A intenção do monge, a intenção do hábito. A intervenção. Mas habitar uma pele pode também ser um ato de um arbítrio, de uma Reppublica di Salò. Como no filme de Almodovar. E além dos arbítrios, há os oportunismos. Há o oportunismo travesti. E há o arbítrio travesti. Vestir o apron para eludir Eros, para sincopar o ritmo da sedução. Para embalar as aparências, aquilo que os olhos vêem e o coração sente. Vestir o esplendor, incorporar o esplendor no ombro, no gingado, eikón, protótipo, monótipo, estereótipo. Estereoscopia. Ver o corpo e ver no corpo o que o corpo encorpora. Os medievais falavam do que se vê: o id quo e o id quod: o que se vê e o que se vê no que se vê. Reluziu, é ouro ou lata, formou a grande confusão. O espetáculo precisa de uma vestimenta, de uma fantasia, de uma incorporação. Quem vai com esta roupa? Quem vai com esta genitália? Mas também quem vai com este salário? Em 1998, Barbara Ehrenreich – ela conta em Nickel and Dimed – embarcou em um cross-dressing do working poor das cidades americanas. Despiu a carreira, o cartão de crédito e a casa própria e foi procurar emprego. Comprar uma experiência, uma incorporação? She came from Greece she had a thirst for knowledge, she studied sculpture at Saint Martin's College, that's where I, caught her eye. She told me that her Dad was loaded, I said "In that case I'll have a rum and coca-cola." She said "Fine."and in thirty seconds time she said "I want to live like common people, I want to do whatever common people do, I want to sleep with common people, I want to sleep with common people, like you." Well what else could I do - I said "I'll see what I can do." I took her to a supermarket, I don't know why but I had to start it somewhere, so it started there. I said pretend you've got no money, she just laughed and said, "Oh you're so funny." I said "yeah? Well I can't see anyone else smiling in here. Are you sure you want to live like common people, you want to see whatever common people see, you want to sleep with common people, you want to sleep with common people, like me." But she didn't understand, she just smiled and held my hand. Rent a flat above a shop, cut your hair and get a job. Smoke some fags and play some pool, pretend you never went to school. Mas tem o arbítrio dos ratos, dos urubus, da fantasia ser só um véu, só uma máscara, e não cara: But still you'll never get it right, cos when you're laid in bed at night, watching roaches climb the wall, if you call your Dad he could stop it all. O hábito tem poderes. Ás vezes, ele invade, se infiltra pelo corpo, o possui. Incorporação é possessão. Como Ernesto Melo Antunes e outros, combatente portugueses em África que foram contagiados por contato com o MPLA. Desertores. Vira-casacas. Aqueles que descobrem que cabem perfeitamente naquela imagem. Naquela fantasia. Habitam. Se sentem em casa. Cross-dressing é também dressing up e dressing down. Os uniformes. Fingir-se mais ou fingir-se menos. Um mendigo na pele do rei, que se desveste, se reveste e sai do armário. Quand nous y sommes.

Nem toda performance subverte o monge e instaura o mosteiro. Há a investidura. A fantasia às vezes é roída. Mas ela renegocia. Ela tenta patrocinar outra coisa. O princípio da realidade – aquele dos ratos e urubus que não largam a fantasia – senta-se à mesa com os cross-dressers e trocam olhares de quid pro quod. Protesto. Protesto aceito. Mas a realidade está no salário, na genitália, na anatomia. Tudo é fantasiável. Tudo pode ser assombrado. Marc Boulet, escritor, fez-se de stalinista na Albânia pré-1991 (antes de sua revolução de veludo), de protestante em Hong-Kong e de dalit na Índia. Com tintura de cabelo e nitrato de prata ao sol, ele escureceu a pele até se tornar um intocável. E, morando na rua, se tornou um cross-dresser de uma outra raça – vestiu a vesti dos dalit, a camisa dos dalits, os pés descalços dos dalits. E vivendo na rua como um deles, desprezado e nunca tocado pelos mais brancos, ele se travestiu de dalit. Na venda, o troco não era mais entregue na sua mão. Vagante. Dress-down e dress-up: o jornalista que não quer ser o branco europeu na Índia, em contraste com o embranquecimento. Que é areia na farofa. O investimento de fortunas, de famas, de gerações sucessivas no embranquecimento – a fantasia é ainda incorporação, os genes que ficam escondidos por trás dos panos, de camadas de panos quase sem fundo. O véu da roupa, da pele, dos ossos. Nada além das camadas. Camadas como as camadas geológicas que vão até o lado escuro da lua. É que o princípio de realidade ama esconder-se.

venerdì 11 maggio 2012

mapa da minha ilha

O nada também me queima a boca
o pó, a areia, a pedra, a Terra - matrioshkas de matéria brutal
Rasgo o vento de ódio e me canso.
Pinto meu corpo
feito para o agradável.
Ele está cercado

domenica 6 maggio 2012

Parvo! Tolo! Bocó!

Obrigada a Joãozinho Vilão que promoveu um sarau
pra lua antes dela se tornar aquela monstruosidade de ontem.
Foi pra lua e pra Manuel de Barros, aquele demente.
Na noitada teve samba pra rei negro, teve culto a Yupana Kernel,
[teve chiclete de onça e ao nosso teto uma geringonça
Na noitada teve coisa crocante de bocó.

Li um poema 4 do Desejar Ser, Livro sobre Nada em que Manuel
confessa: Escrevo o idioleto manoelês archaico (ah!) (Idioleto
é o dialeto que os idiotas usam para falar com as paredes
e com as moscas.) Preciso de atrapalhar as significâncias.
O despropósito é mais saudável do que o solene. (Para limpar
das palavras alguma solenidade - uso bosta.) Sou muito higiênico.
E pois. O que ponho de cerebral nos meus escritos é apenas
uma vigilância pra não cair em tentação de me achar menos
tolo que os outros. Sou bem conceituado para parvo. Fisso forneço
certidão.

Depois, tarde da noite, em uma rodinha de briga de casais,
inauguramos para toda a eternidade nossa marcha perpétua
pelo orgulho bocó.